ROCHA, FERRO E FOGO…

O crepúsculo da guerra

Na pré-história o ser humano utilizou a madeira e o osso como arma e utensílio. Mas foi a utilização da pedra o fator primordial para a evolução de suas técnicas de subsistência e processo de domínio da natureza. Primeiro fê-lo de forma rudimentar, interessado unicamente em encontrar um gume cortante ou perfurante. Depois acrescenta à pedra cabos de madeira ou de osso.

No ano 5.000  a.C. o homem constrói serras, machados , escopros, garfos, anzóis, arpões, lanças e etc. Fabrica utensílios domésticos e consegue que o cão seja o seu fiel auxiliar. Milhares de anos depois chega a polir a pedra e dar-lhe formas concretas, fazendo o mesmo com o osso e a madeira. Um passo mais neste processo foi o descobrimento dos metais: o cobre, o ouro, a prata e o ferro. Pode dizer-se que com isso o homem lançava os alicerces da civilização e entrava já na história.

 Neste período paleolítico a pedra era utilizada como arma de defesa e ataque, sem omitir que a madeira tinha também a sua utilidade. Estas armas empregadas pelo homem pré-histórico foram necessárias para sobreviver em um mundo hostil, povoado de animais de grande força e tamanho, sem excluir que depois usará as armas nas lutas contra outras tribos. O que dispunha de mais armas tinha mais poder.

No Neolítico o homem aperfeiçoou a sua indústria sobre a pedra, á qual proporcionou formas determinadas polindo-a.

Neste período, o ser humano fixa-se em povoações e ocupa-se  de trabalhos agrícolas, surge o arado, o arco e flecha. A flecha originou a criação do escudo e da armadura para poder parar os seus ataques a distancia. Os frágeis escudos fabricados com couro, vime ou esparto revelavam-se eficazes para deter flechas de arcos pouco potentes da época.

Mas o que diferenciou o Neolítico do passado foram as estratégias e táticas e os métodos de manuseio das armas provindos de árduos treinamentos em tempos de paz. Novos métodos de utilização das armas, e a disciplina militar aliados a métodos de treinamento somados a tecnologia de fabricação das armas formaram os pilares dos exércitos primitivos surgindo então os conceitos marciais das artes de combate.

O Homem primitivo reconheceu o valor do treinamento e a importância da utilização de técnicas corretas a partir do momento em que realizou o seu primeiro nocaute, seja ele com os punhos ou com armas rudimentares.

O homem  procurando se defender ou mesmo na disputa de uma caça, carcaça pútrida, ou simplesmente para conseguir fogo ou um abrigo melhor, utiliza-se de um osso, pedra ou tronco e golpeia a cabeça de seu oponente ou abate com maior facilidade um animal. Percebe ele que se praticar com afinco a pegada e o manuseio de sua recente “arma” ele adquirirá melhor domínio dos golpes, conquistando assim a supremacia em suas caçadas e disputas contra outras tribos.

Tal conhecimento foi aperfeiçoado e trabalhado pelos homens primitivos. Os conhecimentos passaram de geração a geração, sofrendo assim, um efeito acumulativo de conhecimentos através de milênios, criando assim técnicas sofisticadas de combate armado e desarmado.

A invenção do Wushu

 “Exausto após longa perseguição da presa, o homem de Pequin olha com atenção aos arredores e procura por intrusos. Tal preocupação é justificada, pois não seria a primeira vez que, devido a falta de atenção, fora-lhe roubado seu precioso fruto da caçada. Os ladrões geralmente são a numerosa e selvagem tribo das planícies que, formada por homens mais fortes e robustos, aterrorizam os pequenos bandos de homens que habitam as cavernas às margens do Rio Amarelo. Mas desta vez ele não permitirá que seu alimento seja levado. Ele arriscará sua vida por isso.

Como era o esperado, surgindo aos gritos os homens procuram afugentá-lo abandonando a carcaça, mas ele não o faz. Estranhando a atitude do solitário caçador, acostumados com a rápida fuga dos adversários, a numerosa tribo para e o observa sem saber exatamente o que fazer. Somente o macho mais forte e raivoso continua caminhando à frente, trombando e empurrando seus subordinados. Aparentando ser o líder do grupo ele urra e grita raivosamente, procurando assim, intimidar o solitário caçador. Chacoalhando os braços e continuando a urrar o líder percebe frustradamente que não adiantará uma simples intimidação. Ele terá que lutar. É isso que sua tribo espera de um líder, um rápido confronto de seu chefe com aquele fraco e solitário caçador.

Antes que o líder do grupo possa dar o bote final, o caçador pega um galho no chão com grande rapidez, e em questão de segundos golpeia ferozmente o  gigante na cabeça. Tonto pela forte pancada o homem cai e tenta vagarosamente se erguer. Sem vacilar um minuto o desesperado caçador ferozmente continua a golpear na cabeça de seu atacante que tomba no chão e não mais se levanta.

Seus seguidores entram em desespero, se entreolham e confusos pela perda de seu líder fogem em desordem. A lua já pairava no horizonte, quando o exausto caçador consegue forças para dar um último grito de glória antes de tomar o rumo de casa com a farta carcaça que alimentará seu clã por dias.”“

Assim pode ser descrito uma das primeiras manifestações das artes marciais na pré-história. Sem treinamento e sem cerimônias, uma atitude provinda da adaptabilidade do gênero humano. Questão de necessidade.

A necessidade é a mãe das invenções.

Kung Fu Wing Chun
Kung Fu Wing Chun

Campo de batalha

(Uma reconstituição histórica)

Quando o mundo está de acordo com Tao,

Os cavalos de guerra passam à retaguarda para puxar carroças.

Quando o mundo não vive de acordo com Tao

A cavalaria abunda nos campos de batalha.

(Tao Te King)

 Vigésimo sétimo dia do quarto mês do trigésimo quinto ano do reinado Huang Di ( 2.676 a.C.), o grande Imperador Amarelo, “deus do meio”.

A bruma fria da aurora envolve a interminável pradaria que se estende até a longínqua linha do horizonte.

Ao nascer do sol, soaram as trompas e martelos de bronze tocaram os sinos de latão anunciando a grande batalha. Os gritos dos oficiais ecoam por entre as alas transmitindo ordens aos subordinados e ajudados por bandeiras e estandartes uma imensa massa humana se move fazendo o solo tremer. Se escondendo atrás de uma fina cortina de neblina, uma fila interminável de homens formando a linha de frente de um exército de cinqüenta mil soldados cobre todo o campo de visão humano, dividindo-se em muitos destacamentos, com objetivos e missões diferentes. No centro repousa firmemente o grosso do exército, formado por lanceiros e alabardeiros, criando uma parede pontiaguda parecida com um porco espinho.

Nos meados das fileiras estavam os carros de guerra, altamente armados com dardos, flechas e lâminas nas rodas contendo os principais líderes da frente de batalha, servindo mais como efeito moral do que prático.

Cercando o exército nos flancos estavam dois destacamentos de cavalaria de choque. Entre a cavalaria e o bloco central encontrava-se ainda uma ala de infantaria couraçada. Por detrás das linhas, milhares de arqueiros posicionavam-se com suas mortíferas setas, prontas a disparar. As catapultas, às dezenas, já carregadas  constituem o par perfeito para a máquina de guerra  humana que domina o topo da colina mais alta da planície.

No centro da formação, tendo o domínio de todo o campo, como num tabuleiro de xadrez, montado imponentemente em seu garanhão de guerra, o sereno Imperador guerreiro Huang Di prepara-se para mover as primeiras peças  de seu exército.

Comandando e observando cada passo com seu modelo primitivo de luneta, o incrível líder descreve aos seus conselheiros e generais, auxiliado por um mapa da região e uma bússola, as manobras que acontecem a 300 metros a sua frente. Cercado por sua guarda pessoal, uma elite de soldados, altamente treinados e escolhidos a dedo, versados em técnicas antigas de combate conhecidas entre os soldados como Chuan Fá (técnicas de boxe) ou a dança dos animais, a posição do imperador é praticamente inexpugnável.  Juntamente com tais guarda costas uma miríade de conselheiros, estrategistas, geógrafos, marechais, médicos mestres da arte do agulhamento (acupuntura), engenheiros e percussionistas.

Os primeiros raios de sol esquentam as faces dos homens. Os deuses da guerra cantam suas canções e a tensão domina o exército. Um cavaleiro foi avistado ao longe, e sua flâmula, que tremulava ao vento, o identificava. Um batedor imperial voltava a galope, com uma fatídica informação: – Chi Yiu disse não!

Uma estranha neblina cobria todo o campo ao redor do exército do Imperador Amarelo. Os homens assustados comentavam entre si que Chi Yiu, um poderoso feiticeiro e alquimista comandava os poderes da natureza barganhando com o deus do vento.

Um pesado estrondo aumentava consideravelmente anunciando um exército maior.

Tão logo o Imperador soube, disparou a galopar por entre as alas em direção ao comandante das frentes. Esclarecendo os últimos detalhes Huang Di parte para sua posição de combate característica; a liderança da cavalaria.  Para clarear a “terra de ninguém”, os oficiais ordenaram que flechas flamejantes fossem disparadas ao solo, uns cem metros à frente.

Primeiro surge por detrás da colina uma nuvem de poeira que se ergue alto, anunciando que o primeiro ataque é o da cavalaria. Chi Yu, “o imperador do mal”  utiliza-se da carga desordenada, mas mortal, causando o temor em seus adversários. Logo se ouve os primeiros gritos ecoando ao longe, juntamente com uma alta nuvem de poeira levantada pelos cascos dos cavalos.

A primeira linha de ataque aparece à frente. Uma feroz mancha de cavaleiros cobre o horizonte, vindo sem anunciar ou mostrar tática.  Berrando e gritando blasfêmias, as vozes ecoam em uníssono assemelhando-se a um grande trovão.

A linha de frente toma posição defensiva. Os arqueiros posicionam suas flechas tencionando os arcos aguardando a ordem final. Os catapulteiros carregam suas gigantescas armas com pedras e recipientes de óleo e betume em chamas.

Huang Di tenta se acalmar nesse momento. Nem as flechas nem as catapultas podem ser disparadas antes que o inimigo esteja no momento propício ao alvo. A espera é angustiante, mas na ordem do líder as setas e pedras são arremessadas por cima das cabeças dos homens formando uma chuva mortal devastando a furiosa massa de inimigos a cavalo. Flechas acertam tanto homem quanto cavalo e as pedras quando atingem o chão arrastam consigo inúmeros cavaleiros.

Logo a linha de frente rechaça o restante da calaria fazendo bater em retirada o primeiro ataque. Os homens munidos de bestas eliminam os poucos sobreviventes que fugiam desesperados de costas. Ao contrário do que pensam os jovens soldados, é impossível continuar em combate com uma flecha fincada em qualquer parte do corpo, e tudo o que se pode fazer é maldizer-se e gemer. A infantaria ligeira move-se e elimina todos os sobreviventes que ainda insistiam em ficar e lutar. Sabe-se que os que batem em retirada muitas vezes são mortos por seus próprios arqueiros. Esta era a lei de Chi Yu.

Na linha de frente do exército de Huang Di, nenhuma manifestação de segurança ou nenhum brado foi lançada ao ar, nenhuma batida de escudos, nenhuma comemoração. O silêncio imperava. A disciplina sempre fez parte do árduo treinamento dos exércitos de Huang Di. Tocam-se as trombetas e estandartes são erguidos. A movimentação das tropas pode ser percebida em todas as direções.

Vagarosamente surge no topo da colina as primeiras flâmulas e estandartes dos exércitos bárbaros, acompanhados das longas lanças da infantaria.

O exército de Chi Yu era três vezes maior que o de Huang Di e seus guerreiros estavam sedentos de sangue e ávidos por pilhagem e conquista.

Chi Yu conseguira um acordo com povos bárbaros do sul, oferecendo grandes frações de terras para os líderes que o apoiassem contra o imperador.

Mas a grande arma secreta dos exércitos bárbaros eram as bestas gigantes, os elefantes de guerra. Trazidos do oeste (terras que hoje chamaríamos de Pérsia e Índia), eram terrivelmente pintados para a guerra e munidos de lâminas e pontas perfurantes amarradas nas patas, tromba e chifre. Arqueiros posicionavam-se no topo de uma espécie de torre nas costas do animal.

Na mente ávida do Imperador Amarelo surgem dúvidas que deveriam ter sido abordadas antes, pensa ele. Conheceriam algo que os chineses do clã do rio amarelo ignoravam? Seriam seus escudos, espadas e lanças leves e menores, que pareciam quase ridiculamente frágeis perante as armas de cobre e bronze do clã do rio amarelo? Como atacariam com elas? Seriam de alguma forma mais letais do que as usadas por seu exército?

Na linha de frente do exército de Chi Yu situavam-se os violentos mercenários bárbaros do sul. O bom senso e a habilidade para comandar ditavam que os comandantes da época concedessem às nações subordinadas a honra da linha de frente de derramar o primeiro sangue. Assim a nata do exército era preservada para momentos mais importantes.

Ao longe, levantaram-se as bandeiras e ouviu-se o comandante gritar em sua língua. Mil arqueiros imediatamente ergueram seus arcos. “É agora!”, alguém gritou das linhas de frente. Cada escudo chinês foi segurado em posição. Um som, que não é um som, mas um silêncio, como seda sendo rasgada pelo vento, ressoou como um lamento dos punhos dos arqueiros inimigos quando suas mãos soltaram a corda e suas setas de ponta de pedra e osso irromperam no ar como se fossem uma única.

Quando esses mísseis formaram um arco no espaço celeste, o comandante de vanguarda de Huang Di aproveitou o momento:

De onde Huang Di estava, foi como se os soldados tivessem se aproximado do inimigo em dois passos. As fileiras da vanguarda atingiram os bárbaros, como um som de trovão, fazendo as primeiras vítimas. O inimigo rodopiou e cambaleou. As lanças chinesas ascenderam e mergulharam. Num instante a zona mortal foi obscurecida num redemoinho de poeira revolvida.

Os chineses avançavam como uma parede móvel e viva, comprimindo os soldados de Chi Yu fazendo-os recuar, pisoteando os feridos. O que num momento antes fora uma formação de tropas com fileiras e colunas, transformou-se numa massa homicida.

Chegara o momento crucial. Era a hora de aplicar a estratégia que consagrara e fizera com que Huang Di fosse vitorioso em inúmeras batalhas: a cavalaria pesada.

A cavalaria preparava-se para flanquear o inimigo agora com o seu imperador no comando. No momento certo Huang Di ordena o ataque montado em seu carro de combate. Seu comando é seguido de um brado único da cavalaria, que anuncia a morte.

A cavalaria rapidamente ataca os lados do inimigo finalmente cercando-os e distribuindo o pânico entre as fileiras.

O Homem e o cavalo eram considerados o tanque de guerra da época. Duzentos quilos de carne humana e animal fundidos a metal que tomava a forma de lanças, alabardas, machados e espadas aliados ao escudo. O estrondo gerado pela violenta colisão da cavalaria pesada contra a infantaria desguarnecida é um som que não pode ser descrito. Homens são pisoteados, corpos rodopiam e os soldados correm por suas vidas. A morte num campo de batalha não é algo bonito de se presenciar, pois as espadas não entram reto perfurando o inimigo, mas são chocadas contra o centro do crânio ou contra a têmpora, lanças não perfuram o peito dos homens mas cravam-se no rosto, nos olhos, na garganta ou nas regiões genitais. Martelos e machados esfacelam cabeças e fazem pedaços de cérebro voarem, confundindo-se com o sangue e osso.

A estratégia final de Huang Di é cercar o inimigo por três lados, deixando o quarto lado aberto para permitir a retirada dos vencidos. Tal tática não era uma simples manifestação de benevolência. Soldados acuados sem esperança de fuga tendem a voltar à batalha e lutar com mais fervor até a morte.

No horizonte alguns poucos adversários ainda resistiam aqui e ali, mas o grande contingente já havia dispersado e podíamos vê-los correndo no longínquo horizonte. Os que levantavam as mãos e depunham as armas eram poupados, mas os que ainda resistiam eram massacrados sem piedade.

No campo jazia uma massa disforme de corpos que parecia estar viva devido a feridos que se moviam por todo o terreno. O solo agora era uma mistura de sangue, suor, urina, vísceras e fezes.  Corvos sobrevoavam sentindo o cheiro de sangue e morte.

Mais tarde alguns soldados foram destacados, com a terrível função de mandar os feridos para o mundo dos espíritos, para junto de seus ancestrais. A cavalaria leve fora incumbida de perseguir os soldados em fuga por todo campo.

O sol pairava sobre as cabeças e se passava do meio dia quando finalmente Huang Di, permitiu-se retirar o elmo encharcado de suor e banhado de sangue coagulado. A grande vitória não o enchia de orgulho. Sabe ele que soldados são símbolos de períodos tristes e que infelizmente a paz é tomada e conquistada pela guerra.

O Primeiro Drama Universal

Nos primórdios daquela época, o grande drama foi o conflito ocasionado por Chi-You. Este deus já foi mencionado no capítulo que trata do deus do meio. Chi-You sempre foi um elemento de desordem no mundo. Em outra versão seu nome aparece como o de uma raça de gigantes violentos e furiosos, cujo chefe trazia na cabeça, chifres portentosos e nos pés, cascos de boi. Sendo o deus da violência, seu poder e força eram incomparáveis, havendo introduzido o uso da flecha e do escudo. Assim equipadas, suas forças tentaram destronar Huang-Di. Para tanto, inicialmente atacaram Yan-Di. Este era manso e piedoso e afim de evitar sofrimentos aos homens, retirou-se para o norte, até Zhou-Lu (hoje He-Nan) , desocupando o lugar de deus do sul para Chi- You. Chi-You, sendo descendente de Huang-Di, não só apossou-se do território que considerava pertencer-lhe por direito, como também adotou o nome de Yan-Di, com o qual veio a ser confundido posteriormente na tradição chinesa.

Os povos que ali viviam eram descendentes de Huang-Di e de natureza benévola. Chi-You intentou formar um grupo de pessoas realmente más. Para tanto exerceu rigoroso controle e punia as pessoas boas e recompensava as más. Chegou a erradicar dessa raça todo sentido de justiça e implantar a perversidade e a crueldade. Desta forma conseguiu insuflar os homens à revolta contra Huang-Di. Quando julgou propícia a época, reuniu povo, monstros, fúrias e deuses para o ataque.

Estando Yan-Di em seu caminho, foi até Zhou-Lu e este evitou-o pela segunda vez, fugindo mais para o norte onde não havia mais como evadir-se. Após infindáveis combates, prestes a pedir misericórdia, não teve outra alternativa senão enviar um mensageiro e implorar a Huang-Di que o salvasse. Huang-Di sabendo-o na iminência de ser destruído por Chi-You, e como Zhou-Lu fazia parte de seu reino, sabia que a perda dessa posição, significaria o avanço de Chi- You sobre ele mesmo. Inicialmente ainda tentou demover o adversário através da virtude e do esclarecimento. Não obtendo sucesso só lhe restou uma alternativa: combatê-Io.

Começou então a guerra. A força de Chi-You logo se manifestou. Suas armas eram mais numerosas, os corpos de seus combatentes maiores, e contava ainda com a ajuda dos povos do sul, com monstros e animais.

Huang-Di também era poderoso, mas sua força era de outra natureza e não podia competir nesse campo com a de Chi-You.

No início da guerra, o poder destrutivo de Chi-You levava sempre a melhor e os combates seguiam-se ininterruptamente. O ponto vulnerável de Huang-Di era que Chi-You, usando de magia, cobria totalmente o campo de batalha com neblina. Nesta situação o lado de Chi-You estava em seu elemento, enquanto o de Huang-Di permanecia completamente desorientado.

Assim eram mortos, em incursões rápidas, soldados e animais de Huang-Di. Em meio à confusão e desespero, um dos auxiliares de Huang-Di, o deus do vento, chamou a atenção deste para um velho que parecia cochilar. Huang-Di estranhou e perguntou como ele conseguia alheiar-se da realidade em tempo tão adverso. O ancião abriu os olhos e respondeu que meditando sobre a constelação da Ursa Maior, percebera que esta não se alterava na parte central, indicando sempre a mesma direção. Era possível seguir as horas. Então, por conseguinte, também as outras direções poderiam ser conhecidas. E o velho medita, pensa, questiona-se e, por mais sofridamente que o fizesse, não encontrava uma solução. Quando então Huang-Di, súbito, sente-se iluminado e surge a mágica resposta na criação da bússola. E fez construir um carro, utilizando-se do invento. Na frente havia a figura de um gênio com um dedo sempre indicando o sul. Ao usarem este carro, as tropas de Huang-Di conseguiram atravessar a neblina.

Nas tropas de Chi-You havia três tipos de monstros:

O primeiro, de cabeça de homem e corpo de animal, possuindo uma só mão e um pé; o segundo, de rosto humano, corpo de animal com quatro pés; e o terceiro de corpo infantil, olhos vermelhos e orelhas lanciformes. O poder desses monstros consistia na emissão de um som tão ensurdecedor que num crescendo supliciava até à morte. Como defesa contra esse som havia a voz igualmente temida do dragão que o neutralizava. Huang-Di adaptou chifres de boi e cornos de carneiro para fazer cornetas. Estas deviam ressoar como se fosse o dragão. E os soldados de Huang-Di passaram a usar as cornetas com o que destruíram os monstros de Chi-You.

Huang-Di também possuía um dragão alado chamado Ying-Long. Morava ao sul do Monte Tu-Qiu. Conseguia absorver enormes quantidades de água e depois a transformava em chuva. Huang-Di ponderou que poderia afastar a neblina de Chi-You com a chuva. Chamou o dragão Ying-Long e este, tão logo chegou, começou a guerrear contra Chi-You e fez chover ao bater as asas. Contudo Chi-You convocou aliados mais poderosos, o deus do vento e o deus da chuva, para ajudá-lo. Estes provocaram um temporal e um furacão que anularam o efeito da chuva do dragão. As tempestades atingiram as tropas de Huang-Di, que fugiram.

Huang-Di, em grande aflição, assistiu a tudo do alto de um monte. E decidiu enviar ao campo de batalha sua filha chamada Han-Ba, que era feia, sem cabelos e trajava vestes negras. De seu corpo desprendia-se grande massa de calor. Chegando Han-Ba ao campo de batalha os ventos e as chuvas cessaram instantaneamente, tal como previra Huang-Di. A temperatura tornou-se tão quente que afugentou as tropas de Chi-You. Nesse momento o dragão Ying-Long atacou com sucesso e eliminou alguns inimigos. Contudo, esse modo de agir não foi feliz porque a filha de Huang-Di esgotou-se e não conseguiu mais ascender ao seu palácio celeste. Permaneceu na terra, ocasionando sua presença sempre grandes secas, onde quer que estivesse. Essas calamidades fizeram com que os povos a detestassem e procurassem expulsá-la por todos os meios.

Muito depois, um neto do deus dos cereais, chamado Shun-Jun, comunicou o fato a Huang-Di que ordenou então que sua filha fosse morar ao norte da Água Vermelha, de onde não deveria mais sair. Porém Han-Ba já se habituara muito a vagar pela terra. E sempre que isso ocorre provoca secas, causando grandes calamidades.

Chi-You estava perdendo as batalhas mas ainda permanecia forte. A guerra prolongara-se tanto que Huang-Di temia que seus soldados perdessem a fibra. No intuito de encorajá-los, inventa um tambor. Para alcançar este objetivo envia um contingente de homens ao monte Lui-Po, situado no mar do leste. Ali habita um animal chamado Kui, de forma bovina, mas sem chifres e apenas com uma pata. Kui era um ser anfíbio podendo viver tanto dentro como fora do mar.

Caçado este animal, fizeram de seu couro um tambor. Chi- You ainda enviou soldados à lagoa do trovão em busca do deus do trovão para sacrificá-lo. Em seguida ordenou que usassem o osso maior deste deus para bater no tambor. O ribombar era tão intenso que repercutia por 500 milhas. Esse tambor foi enviado ao campo de batalha. Houve nove batidas que ecoaram no mundo inteiro fazendo-o estremecer. As tropas de Huang-Di . adquiriram tal coragem que passaram a não temer mais nada, enquanto que os soldados de Chi- You, muito ao contrário, ficaram de tal forma apavorados que até os monstros alados não lograram mais alçar vôo e os sem asa não conseguiram caminhar. Petrificaram-se todos. Assim Huang-Di venceu uma grande batalha.

Essa derrota foi demasiada brutal para Chi- You. Perdera mais da metade de suas forças. Temia a destruição total. Igualmente não tinha condições para se render, o que significaria uma vergonha inominável. O pânico era geral no seio de suas tropas. Alguém aconselhou-o a ir ao norte, convidar a tribo Kua-Fu para ajudá-lo. Aceita a sugestão, prontamente foi enviado um mensageiro ao norte. Era essa tribo constituída por gigantes descendentes do deus da terra. Também administravam o inferno, situado no mar do norte. Todos os animais lá existentes eram negros. E assim também era a terra. Por isso era denominado “País Negro”. O guardião deste país era um gigante famoso chamado Tu-Bo. Sua cabeça era de tigre com três olhos. Caminhava arqueado em virtude de seu corpo ser gigantesco. Possuía dois chifres e cuidava das almas dos homens do País Negro.

Os membros da raça Kua-Fu moravam nas montanhas do norte. Eram colossais e de força descomunal. Duas cobras amarelas perpassavam suas qrelhas, nas mãos também traziam duas cobras da mesma cor. O que é de notar, é que a índole dessas cobras era benfazeja e pacífica. Há um relato sobre elas.

Um gigante de Kua-Fu desafiou o sol na planície para ver quem corria mais. Seguiu para o oeste tão rápido que em pouco tempo já chegara a Yu-Gu. Este vale é o lugar onde o sol torna -se mais incandescente e brilhante, numa intensidade transfigurante. O gigante aproximou-se mais e mais e sentiu-se radiante de felicidade. Deslumbrado abre os braços para envolvê-lo, mas como havia corrido exaustivamente e uma sede exacerbante o dominava, não conseguiu o intento, prostrado pelo intenso calor do sol. E então, inclinando o corpo num esforço derradeiro, abaixou-se e bebeu a água do Rio Amarelo e do Rio Wei tão afoitamente que os esvaziou. Ainda assim não conseguiu saciar-se. Rumou para a Lagoa Grande, mas esta também não foi suficiente. Em desespero dirigiu-se para o mar do Norte. A água desse mar aplacaria sua sede, contudo ele morre em meio ao caminho. O estrondo de sua queda estremeceu o mundo inteiro. Escapou-lhe o bastão que segurava. No local onde tombou surgiu uma floresta de pessegueiros com frutas posteriormente transformadas em frutos do saber para os que desejavam saciar a sede de iluminação. Esta floresta ainda existe no estado de Shen-Si.

Finalmente o mensageiro de Chi-You encontrou a tribo de Kua-Fu. Tentou convencê-los a ajudar mas de imediato não obteve uma concordância geral. Havia uma facção, que considerava este apelo uma oportunidade para socorrer os mais fracos, e por fim todos decidiram participar.

Quando Chi-You conseguiu sensibilizar a raça Kua-Fu com seus argumentos, tornou-se novamente forte. Voltou a combater Huang-Di e a guerra fez-se mais acirrada e cruel.

A raça Kua-Fu dificultou muito as ações de Huang-Di. Assim continuou até o aparecimento de uma fada de grande formosura com cabeça de mulher e corpo de pássaro. Seu nome era Xuan-Nu. Veio visitar Huang- Di para ensinar-lhe a arte marcial. Huang-Di aprendeu depressa e desta forma, ao guerrear, tomava desde o início uma posição estratégica vantajosa e dispunha suas tropas em ordem conveniente.

A movimentação das tropas era realizada com inteligência. Nessa ocasião veio Huang-Di a descobrir cobre no monte Kun-Wu e o empregou na fabricação de espadas. Estas adquiriam uma cor esverdeada de brilho tão intenso que projetavam a luz a grandes distâncias. Eram ademais tão transparentes que pareciam de cristal e podiam cortar tanto o jade quanto o barro.

Agora Huang-Di já dispunha de novas armas e diversas estratégias de combate. Com isso suas tropas fortaleceram-se. Ainda que Chi-You e os gigantes Kua- Fu fossem poderosos e violentos, não podiam comparar- se à força planejada de Huang-Di. Na derradeira batalha sua derrota foi definitiva. Huang-Di eliminou definitivamente todo o povo de Miao (estirpe chinesa).

Depois do que capturou vivo a Chi- You, matou-o em Tiao, localidade no município Tiao, na província de Shan-Xi. O local do acontecimento ainda é conhecido até nossos dias, junto a uma lagoa cor-de-rosa. O povo diz que é o sangue de Chi-You.

A cabeça de Chi-You foi enterrada no município de Shou-Zhang, no estado de Shan-Dong. Ainda hoje encontra-se lá o seu túmulo. Era costume em cada ano, no mês de outubro, realizar-se uma cerimônia comemorativa.

Diz a tradição que uma fumaça vermelha se elevava ao céu, formando no alto uma bandeira. O corpo de Chi-You foi enterrado no município de Qu-Ye, no estado de Shan-Dong. A canga de seu suplício não foi tirada, ficou salpicada de sangue. Após sua morte transformou-se em uma floresta de árvores com folhas vermelhas, resquício da decomposição do corpo de Chi-You.

Esta guerra permaneceu profundamente gravada no coração do povo chinês. Até a dinastia Zhou e Shang, os bronzes foram decorados com a imagem de Chi-You para assim frear a ambição humana. Na dinastia Han ha via representações teatrais chamadas Teatro Chi-You, nas quais era encenada a guerra de Chi-You contra Huang-Di. Apresentavam as batalhas em forma de dança.

Huang-Di, representante da justiça, venceu a guerra mas perdeu a filha Han-Ba para o mundo e também o filho Ying-Long, aquele que possuía a graça de gerar o vento e a chuva. Atingido pelos monstros nunca mais pôde retornar ao céu. Ficou assim no mundo, no sul da China, o que explica porque ainda hoje haja chuvas mais abundantes naquela região do que no norte.

 

 

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